quinta-feira, 21 de junho de 2007

O corvo


Os meus sonhos ardem num abismo de fogo.
Um a um vão sendo degolados, afogados pelo fumo negro que respiro e maltratados pelas correntes que me apertam o corpo até os ossos estalarem, até o meu corpo gritar no desespero, a dor intensa, desejando um golpe profundo e fatal que dilacere as entranhas e faça o silêncio moribundo pairar sobre mim.
A ave negra conduzirá todas as operações, mas não se oporá a qualquer método de tortura que me destrua e me envie para um espaço complicado, para pensar sequer, por um segundo, em viver.
Sabe tão bem quanto as minhas debilidades e fraquezas, como também sabe o número de traidores irónicos e os seus sarcasmos brutais, animalescos, impossíveis de contrariar em determinados momentos.
Todos eles capazes de nos aniquilar tão facilmente como respirarmos um dia a nossa morte antecipada.
A minha ave negra olha-me nos olhos disfarçadamente, mas quando se apercebe que foi também captada pelo senhor da morte, olha-me fixamente nos últimos instantes, antes que a sombra de sangue se acerque do nosso mundo.
Tem pena de mim mas não chora…
Mantém a sua frieza na plumagem negra.
Não quer tornar-me um fraco cheio de medo do destino cruel que nos espera.
Sou confrontado com uma espada trespassando-me. Num primeiro momento não sinto nada, mas breve esse momento e a loucura explode já dentro de mim.
Centenas de predadores demoníacos amontoam-se pelo melhor terreno, para alcançarem um pedaço de mim que lhes sacie a fome e o ódio.
Ainda assim a ave negra me sorri; diz-me nitidamente o que ainda não me lembrara: “Terão a sua refeição mais amarga, tão drásticos somos. Sofrerão da maior agonia que se possa imaginar”.
Ambos caíramos por terra, mortos.
Talvez mais vivos do que nunca.
A minha alma voa sobre as suas asas bem alto rumo às profundezas da terra…
Nas nossas costas, saídas das árvores, voam à toa milhares de aves dançando o fim do inimigo.
Fica ainda no vento a miragem beijando a destruição, enquanto a ave e eu nos despenhamos no mar, ocultando para sempre o derradeiro anoitecer, nosso cúmplice inevitável.
Sinto-me um fóssil afogado nas águas, os olhos tremidos frente a frente com um tubarão. Por certo serei devorado.
Inexplicavelmente sinto uma força sensorialmente activa e intensa à minha volta…
Vêm-me à memória aqueles dias de desânimo que aquela amiga eterna fez esquecer.
Sei que estás comigo, tal como sempre estiveste…
Não luto sozinho.
Arrasto-me até à areia, com pérolas nos olhos, vestígios de algas no meu rosto e sal no meu cabelo. Observo as mãos molhadas, ergo os braços e viro as palmas das mãos contra o sol…
Deixo a espuma subir-me até aos tornozelos e desfazer-se na minha pele…
Sorrio…
Vejo um mundo diferente…
Vou caminhar com confiança…
Vou fazê-lo por mim, por ti, por ambos…
Depois com o meu sorriso mais alguém sorrirá, e mesmo que eu volte a estar triste sei que haverá sempre alguém atento ao brilho harmonioso entre o mar e a brisa que respirarmos.
Haverá abismos, mas saberei ultrapassá-los, como se entre uma margem e a outra do coração, existisse uma ponte levando-nos rumo aos sonhos do tempo incerto, o futuro…

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